quarta-feira, 15 de junho de 2011

Festa de preto na casa da Tia Ciata

DIA DE OGUM.
     Desde de cedo ninguém parava no velho casarão da rua Visconde Itaúna. A negra baiana era ativa demais para os seus mais de sessenta anos de idade. Toda de branco, saia engomada, cabeção de renda, torso bordado envolvendo totalmente os cabelos rebeldes, sobre os seus fartos jorrava uma cascatas de contas coloridas. Hoje, o pano-da-costa louvava a cor do santo do dia. No corredor comprido e sombrio ladeado de quartos, ligando a sala da frente à cozinha, ela ia e vinha. Na sala de visita um altar ornado de rica toalha, entronozados os guias de sua devoção entre luizinhas e flores, cadeiras e bancos ladeando as paredes, espaço aberto no meio do cômodo, o cheiro do dendê chegava suave. Nos fundos, antes da cozinha, a outra sala, mesa farta já posta.
     - Tia Ciata, vem prová o tempeiro!
     - Já vai, minha fia!
     E olhava a Praça Onze lá fora, de onde dentro em pouco surgiria seu povo.
     Toda manhã saía equilibrando o tabuleiro na cabeça e caminhava na direção da rua Uruguaiana, onde dobrava e seguia até a Sete de Setembro, sua esquina. Ali se abancava e exibia aquela gostosa parcela de culinária baiana para fregueses e transeuntes já acostumados ao sorriso e às maravilhas em que suas mãos hábeis transformavam os quitutes. Rio de Janeiro, 1916. Mas em dia de pagode ela voltava mais cedo. E pagode era com ela, ô véia danada de fogueteira! Era até compositora...
      Na cozinha abafada negras suavam em frente a panelões fumegantes. Afamosa moqueca de peixe. Pela porta e janelas abertas via-se o quintal amplo, mangueira, jabuticabeira, limoeiro, abacateiro, moleques arrumando as bebidas no tanque.
     E toca a chegar gente, "Boa noite, minha tia, bênção" , "Deus te abençõe, meu sobrinho, Oxalá nos dê uma boa noite, meu pai Ogum comandando o terreiro, saravá meu pai!" Por todo canto gente e mais gente se sentando, comendo, falando, bebendo, tocando, dançando. Todo tipo de gente, tudo feliz, tudo parente, chegando e beijando a mão da tia de todos. Tia Ciata. "Sua bênção, minha tia", "Oxalá te abençoe, meu sobrinho". Baianas velhas carregando pencas de crioulinhos de cara matreira, alguns chorando, "Mamãe , cadê mamãe?"
     Na sala da frente o baile comia solto, um crioulão alto com cara de criança tocando uma flauta que Deus me livre! Esse menino Pexinguinha vai longe, que capeta nessa flauta!" Com pose e maestria Donga olhava as mulatinhas enquanto secundava os trinados, maltratando os bordões do pinho novo. China ensaiava uma terça. E um escuro com calombo nas costas centrava no cavquinho. Êta ferro! Pares enlaçdos.
     Na outra ponta do corredor, tão distante que nem interferia, partido alto seguia rasgado. João da Baiana de prato e faca na mão raiava a chula, tia Perliciana sorrindo orgulhosa, Heitor dos Prazeres machucando o cavaco. Um grupo de negros cercavam os músicos na maior animação, todo mundo envolvido pelo ritmo nativo. Baianas enchendo pratos de comida, ô que cheirinho bom, a pinga pra rebater e inspirar.
     Lá do fundo do quintal, entre as árvores, tambores batucando, ávore e tambor, África renascida em plena capital federal, a roda, o batuque, palmas e suor, um casal descalço batendo os pés na terra e negaceando os corpos, que se encontravam finalmente na umbigada fatal. E em qualquer canto de casa, às vezes trocando de lugar mas sempre presente, Sinhô, Getúlio Marinho, Mano Elói, Caninha, Didi da Gracinda, João Câncio, Lalu de Ouro, amigos, além das dezenas de filhos e netos da velha, inventavam, sem saber, uma riqueza maior: a nossa música popular. Sob as bênçãos de Oxalá, Ogum, Xangô, e sob o olhar jovial e carinhoso de Hilária Pereira de Almeida, a tia Ciata.
    E assim o samba se fazia, nas bandas de São Sebastião do Rio de Janeiro...
(Fonte: SILVA, Marília T. Barboza & OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de.  Silas de Oliveira, do jongo ao samba-enredo. RJ, FUNARTE, 1981.)

Tia Ciata

Tia Ciata, Tia Josefa, Donga, Pixinguinha e João da Baiana

Pixinguinha


Heitor dos Prazeres


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